“Aprendi que um homem só tem o direito de olhar outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se”. Este apotegma atribuído ao escritor colombiano Gabriel Garcia Marques traduz adequadamente o propósito de nosso tema: Os vários olhares do educador Cristão.
Olhar além dos estereótipos
O valor e a importância do olhar estão impressos na ciência, na arte, na indústria de entretenimento entre outros. Nossa sociedade tornou-se menos auditiva e mais midiática e visual. Somos atraídos pelas cores, pelo colorido das propagandas, das roupas, das imagens. Porém, não aprendemos a ver, a olhar com profundidade. Escapa de nossas vistas o discernimento do olhar.
Olhamos, mas não vemos. Vemos, entretanto, não discernimos. Olhamos, mas procuramos os estereótipos sociais; fitamos os olhos à procura do traço retilíneo e nos espantamos ao encontrar o curvilíneo. Mas a vida e seus atores não seguem as arestas retilíneas da rotinização do cotidiano, mas as curvas e desvios do viver. Não segue a marcha militar, mas o borboletear da infância, da vida. Somos, portanto, desafiados como professores a olhar além do “lugar comum”, dos “clichês”, dos “chavões”. A ver além das máscaras da subjetividade de nossos alunos.
Olhar além das máscaras teatrais
Na Grécia clássica, os atores do teatro grego usavam uma máscara a cada apresentação. Além de esconder o rosto, o artefato representava o personagem que seria tipificado. As máscaras eram estáticas, de feições imóveis, pois indicavam o destino final do personagem. Essas máscaras eram chamadas de persona, e deste termo originou-se a palavra personalidade, para indicar o “elemento estável da conduta da pessoa”.
Quando os atores colocavam a persona, deixavam de ser quem eram para assumir o seu papel entre os saltimbancos. É para além dessa compleição social que o educador é desafiado a olhar. Ele é instado a ver um pouco além da máscara e do personagem que o aluno representa no grande palco teatral, chamado sala de aula. Alguns alunos usam a máscara da tragédia, do narciso, do mito, do herói, do cômico. Infelizmente, os professores conhecem apenas os papéis do alunato na escola, e deixam escapar aos olhos à verdadeira persona que eles assumem na vida. Todavia, qual o conceito de olhar que subjaz o presente tema?
Na presente abordagem, pouco adianta o sentido etimológico adoculare, muito menos a sintaxe ou morfologia do termo. A linguagem e seus jogos semânticos são capazes de atribuir às palavras sentidos diferentes daqueles que se concebem por meio de suas raízes; nisto, talvez, concordasse Wittgenstein.
Olhar, nesta acepção, não diz respeito ao olhar enquanto função ocular. Olhar é ver em profundidade. É apreender critica e analiticamente uma situação em sua dimensão totalizante. É ver além do invólucro subjetivo das aparências fugidias. É diferençar e mediar através da observação dos fatos, dos objetos, dos sujeitos, da subjetividade.
Trata-se de uma visão que ultrapassa a exterioridade e a perspectiva plástico-pictural, para usar uma expressão de Bahktin. A propósito, Bakhtin afirmara que a visão exterior ou plástico-pictural, “refere-se à percepção das fronteiras exteriores que configuram o homem”. É uma visão associada ao aspecto físico, transitório, circunstancial, metamórfico. Porém essa forma de “ver a outrem” se reduz na subjetividade do professor que, desatento, julga pela aparência fugaz, em constante mutação. Bakhtin assevera que
Apenas o outro pode, de maneira convincente, no plano estético (e ético), fazer-me viver o finito humano, sua materialidade empírica delimitada. Num mundo que me é exterior, o outro se oferece por inteiro à minha visão, enquanto elemento constitutivo deste mundo. A cada instante, vivo distintamente todas as fronteiras do outro, posso captá-lo por inteiro com a visão e o tato; vejo o traçado que lhe delimita a cabeça, o corpo contra o fundo do mundo exterior; no mundo exterior, o outro se mostra por inteiro à minha frente e minha visão pode esgotá-lo enquanto objeto entre os outros objetos, sem que nada venha ultrapassar o limite de sua configuração, venha romper sua unidade plástico-pictural, visível e tangível.
Contudo, essa visão exteriorizada é reducionista, cega e incapaz de ir além do invólucro material que tanto “aproxima” como afasta o indivíduo do outro. Com este olhar, o professor apenas toca o aluno enquanto sujeito tátil, “objeto entre os outros objetos”, mas jamais lhe atinge a alma, o ser integral – emoção, vontade e intelecto. O docente que assim vê não é capaz de enxergar, uma vez que não fora educado a olhar além do invólucro da subjetividade.
Atenta ao olhar desagregador e reducionista do professor, Madalena Freira Welfort afirmara que “não fomos educados para olhar pensando o mundo, a realidade, nós mesmos. Nosso olhar cristalizado nos estereótipos produziu em nós paralisia, fatalismo, cegueira”.
De acordo com a educadora é imprescindível que o professor eduque o seu próprio olhar; que deixe de ser míope e condicionado. Isto somente é possível se o próprio abandonar o “olhar cristalizado”, condicionado por uma cultura que desaprendeu a olhar com alteridade, compaixão e amor, no entanto, aprendeu a ver o próximo como seu concorrente, rival. Esses estereótipos são formados culturalmente nas salas dos professores, nas reuniões docentes, nos corredores escolares, quando emitimos acriticamente nossas opiniões reducionistas a respeito de nossos alunos, rotulando-os com os estereótipos de uma sociedade excludente e competitiva.
O olhar espacial do mestre, que configura o outro como mero recorte da realidade que o cerca, produz uma visão distorcida. Às vezes, encerra o sujeito no determinismo histórico e no fatalismo teleológico; como afirmara Bakhtin, nas “fronteiras exteriores que configuram o homem”. Todavia é preciso romper com a teia dos condicionamentos culturais; pôr-se em movimento oposto à paralisia que se recusa à alteridade; abrir-se ao colóquio dialético-dialógico.
O pensamento arguto de Heidegger a respeito do “ser-um-com-o-outro” (Miteinandersein) complementa a presente asserção. Para o filósofo, o professor pode estar junto aos seus alunos no auditório ou na sala de aula e mesmo assim não estar “um-com-o-outro”. O espaço escolar torna-se, portanto, uma teia de vivências em que cada ator, embora presente, se aparta do outro por motivos vários. Heidegger chama isto de “um não-ser-uns-com-os-outros privativo”. O sujeito fechado em seu próprio casulo, divide com outro um recorte do espaço, mas privativa seu ambiente.
Estar um-com-o-outro não é apenas habitar em, mas conviver com. Apesar de o professor e o aluno ocuparem funções distintas na sala de aula, têm por intuito o mesmo: o ensino-aprendizagem, e, segundo Heidegger, “o intuito voltado para o mesmo pertence à essência do ser-aí”(Dasein). O ser-aí é o ente que se explícita historicamente a partir das relações que experimenta com o mundo. É através dessa relação-abertura com o mundo que o sujeito encontra a si mesmo. Ser-aí, como traduz Casanova, é “ser-em-uma-amplitude-aberta; ser-clareira”.
Olhar o sujeito cognoscente
Por conseguinte, o professor não pode fechar-se à experiência que emana das responsabilidades de sua existência e profissão, mas, parafraseando Bakhtin, “vivenciar-se através de sua singularidade que se distingue fundamentalmente das formas do outro através das quais vivencia a todos os outros sem exceção”.
Ser professor é assumir um compromisso com a transformação do outro, da sociedade, da igreja, do mundo. O professor é uma parte do todo que forma o professorado, entretanto, a individualidade não pode ser reduzida à totalidade. O professor, para usar uma expressão de Hannah Arendt, deve fugir da condição de bucha de consenso e gado cognitivo.
O educador precisa assumir suas responsabilidades, não

apenas educacionais, mas sociais; ser crítico; ver-se singular no mundo, sem contudo, particularizar-se a ponto de ignorar as injustiças, e de se afastar do outro. Ele não deve prescindir da afetividade, mas estabelecer uma relação amistosa e pessoal com o alunato, tendo aos seus olhos sua história e subjetividade, assim como a história e a subjetividade de seus alunos.
O encontro dessas duas histórias e subjetividades distintas, mesmo que se conflitem, é de responsabilidade do educador colocar-se como protagonista principal desse processo, participando efetiva e afetivamente da construção de si e do outro. Segundo Paulo Freire
o clima de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes, generosas, em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico.
O homem sente-se pessoa não apenas pelo que é, mas também quando vê o seu reflexo no outro que lhe é semelhante. Alteridade, humildade, política, justiça e práxis devem nortear a formação do educador cristão. Logo, não é admissível ao múnus docente a tirania, a síndrome da normalidade e o desinteresse do professor pelo ser humano.
Portanto, o olhar ultrapassa as raias da mera visão e abarca o sujeito cognoscente – o ser cônscio de suas capacidades e limites. Olhar faz parte da imaginação, da fantasia, da reflexão pretérita do que fomos, da consciência presente do que somos, e da utopia futura do que devemos ser. No mundo unificado do conhecimento, assegura Bakhtin, “não posso colocar-me enquanto eu-para-mim em oposição a todos os homens do passado, do presente e do futuro concebidos como outros para mim”. Isto exige uma reeducação do olhar que não se restringe à estética, mas amplia-se com a ética. Uma “aprendizagem de desaprender” à moda de Fernando Pessoa:
Saber vem sem estar a pensar,
E nem pensar quando se vê
Mas isso (tristes de nós que trazemos alma vestida!)
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
Olhar formando competências
A aprendizagem do desaprender é o que pretendemos em relação ao olhar do professor. Para que isto aconteça é necessário que o educador abandone as amarras lazarentas de seus condicionamentos histórico-sociais; que deixe para trás, depositado no túmulo, seu olhar reducionista e condicionante. Talvez, somente assim sejamos capazes de mudar o nosso olhar concernente ao múnus docente, a fim de que, como afirma Perrenoud, desenvolvamos a competência de “conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação”.
O desenvolvimento desta competência é o resultado da capacidade didático-pedagógica do professor ao proporcionar aos educandos diversas situações que lhes favoreçam a aprendizagem. Todavia a distância entre o real e o ideal mais uma vez faz-se presente, como uma constatação insofismável. E o olhar diferenciado do professor é deveras importante. Perrenoud alerta que uma “situação de aprendizagem ótima”, “aos olhos de muitos professores em exercício ainda parece uma utopia” (p.55). Isto porque, segundo o autor, seria preciso encarregar-se de cada aluno pessoalmente, o que não é possível e nem desejável (p.56). O meio-termo para essa problemática segundo o educador francês é
organizar diferentemente o trabalho em aula, acabar com a estruturação em níveis anuais, ampliar e criar novos espaços-tempos de formação, jogar, em uma escala maior, com os reagrupamentos, as tarefas, os dispositivos didáticos, as interações, as regulações, o ensino mútuo e as tecnologias da formação.
Essa competência global não se restringe apenas a um dispositivo, ou a métodos e instrumentos específicos, pelo contrário. É necessário o emprego de todos os recursos disponíveis a fim de “organizar as interações e atividades de modo que cada aprendiz vivencie, tão freqüentemente quanto possível, situações fecundas de aprendizagem” (p.57). Para o adequado desenvolvimento desta competência sistêmica são necessárias quatro competências específicas:
- Administrar a heterogeneidade no âmbito de uma turma;
- Abrir, ampliar a gestão de classe para um espaço mais vasto;
- Fornecer apoio integrado, trabalhar com alunos portadores de dificuldades;
- Desenvolver a cooperação entre os alunos e certas formas simples de ensino mútuo.
Para o atendimento dessas competências, urge um novo olhar do educador a respeito de sua formação, sua práxis, seus alunos, de sua gestão em sala de aula, e de seus relacionamentos com seus pares.
De acordo com Libâneo, para a identidade profissional dos professores e o desenvolvimento de competências são necessários certos requisitos profissionais que tornam alguém um professor ou uma professora. Esse conjunto é denominado profissionalidade. Contudo a profissionalidade, segundo Libâneo, supõe a profissionalização. Esta última refere-se às “condições ideais que venham a garantir o exercício profissional de qualidade” (p.75), tais como: “formação inicial e formação continuada nas quais o professor aprende e desenvolve as competências, habilidades e atitudes profissionais; remuneração compatível com a profissão [...]” (p.75).
De acordo com as duas últimas visões apresentadas, Perrenoud e Libâneo, a ação docente traduz-se em conflitos entre a teoria e a prática, o ideal e o real. Nossa desejo, portanto, é que o professor, através da educação do olhar, saiba mediar essas realidades, para que cumpra efetivamente o seu papel enquanto educador cristão.
Esdras Costa Bentho .